Urbanessência e Urbanesseres
Viviani Duarte e Suel - 2007-05-23 - 2007-06-06
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Urbanessências... As relações entre arte e cidade se estendem continuamente ao longo da história, e não raramente delineiam relações que a um só tempo particularizam e expandem as possibilidades de problematização e compreensão da sociedade, de sua cultura e hábitos, todos estes matizados pelas vivências e imaginários advindos da experiência sensível do artista em seu tempo e em seu lugar.
Este espaço da cidade, suas continuidades e rupturas assomam na atual produção de Suel como os lugares inequívocos da experiência artística, denotando impulsos criativos nascidos de uma contemporaneidade urbana atenta às possibilidades de hibridização pictórica dos lugares do presente.
Inspirando-se e amalgamando artistas da tradição paisagística tais como o alagoano José Paulino e o alemão Caspar David Fredric ao repertório de tranversalidades bem humoradas existentes sobretudo nos universos do design gráfico contemporâneo, o artista tenta passar ao largo das não raramente superficiais afirmações que declamam a “morte” da pintura como meio expressivo da arte contemporânea.
Ao assumir a pluralidade, suas obras afirmam-se como um exercício seguro das técnicas pictóricas aliadas a um pertencimento tempo-espacial que contextualiza e atualiza a realidade de suas escolhas, dotando-as de significância discursiva.
Dentro das cenas urbanas escolhidas para seu exercício psicológico de interpretação, o artista parece trilhar paisagens ligadas aos entre-lugares da contemporaneidade. Noções tais como a de “fragmento” e de “labirinto” conduzem suas atenções, inserindo estranhamentos à pintura ao propor trilhas visuais ligadas à extensões urbanas por vezes periféricas e despercebidas dentro da complexidade da cidade contemporânea.
Em uma dinâmica exploratória das reentrâncias e atmosferas por vezes romantizadas da cidade, ele introduz a interferência como uma possibilidade de contemporaneização das sensorialidades visuais captadas. As imagens oferecidas pelo artista nascem de certas ampliações simbólicas das reproduções visuais das paisagens vivenciadas, onde através de uma caligrafia pictórica criativamente contaminada e aberta a sobreposições emblemáticas, Suel acaba por oferecer narrativas urbanas absolutamente emocionais, subjugando o visual ao pensamento, a razão à sensibilidade, a história à memória e o território ao lugar.
As representações acabam por figurar de maneira instigantemente ambígua: como imagens conduzidas quase hiper-realisticamente, mas também enquanto meios visuais para outras correlações - mais poéticas e alegóricas - acerca do que identificamos como os códices de um universo pessoal de essencialidades urbanas eleitas pelo artista.
A experiência poder ser partilhada. Quase como uma metáfora do deslocar-se pela cidade, suas obras nos conduzem visualmente por caminhos que conhecemos, mas nos quais ainda podemos sentir o mistério proposto pelo deslocamento que emerge através da introdução individual e inevitável de nosso próprio pathos ao cenário circundante.
Partindo daquilo que poderíamos chamar de uma lógica do descobrimento, Suel se utiliza do verbo da paisagem para abordar os silêncios que existem nos lugares nos quais sua percepção se tornou aguda e refinada pela afetividade. O fragmento e a multiplicidade do espaço visual também são o fragmento e a multiplicidade do desejo e da ação. A paisagem urbana então surge como somatório indelével de fatos visuais (perspectiva, luz, sombras, caminhos...) e das transitoriedades de sua própria e flexível identidade contemporânea.
Caroline de Gusmão
Viviani Duarte é uma dessas artistas de Maceió que, apesar de não ter estado no Grupo Vivarte (1984-1985), sentiu, de alguma forma, as vibrações do vivartismo; isto é: as idéias com forças secretas recebidas pela herança cultural desse grupo ao qual ela vem se filiando espiritualmente desde quando, há três anos, adentrou “pra valer” o campo da arte em Alagoas.
Em conseqüência, suas participações no campo artístico alagoano vêm produzindo uma cultura visual engajada. E sempre com a máxima clareza de propósito na tentativa – digamos “transversalista” e/ou “ecosófica” (Félix Guattari) – de compreender o que está acontecendo à natureza, ao homem e à sociedade. Não seria então a “urbanessência” e o “urbanescer” da artista-cidadã, em Viviani Duarte, impulsionando-a a procurar pela cidade subjetiva através de sua arte?
Essa compreensão complexa tem em vista a transformação do mundo a partir de si mesma. Coisa que Viviani se vê obrigada a fazer, cotidianamente, por força das circunstâncias de ser também professora e psicóloga. Por isso que sua arte, embora sendo “contemporânea” (inclusive no sentido estético-ideológico), não atenta contra a lógica nem a história. Pelo menos não contra àquela “lógica do inconsciente” lacaniano vivenciada pelo espectador mais atento de sua obra que saiba vê-la ciente da criativa combinação, feita pela artista, de Ciência e Arte.
Investida pela força reflexiva da “arte conceitual”, o elemento genial do projeto estético da artista é a idéia de bacias de alumínio colocadas no chão, com fotos de “queimadas” impressas ao fundo delas, com H2O dentro. Tais bacias assim concebidas e dispostas no cenário da instalação, uma espécie de câmara escura tripartida, parecem simular às avessas algum tipo sui generis de “Paraíso das Águas”. Na certa (creio eu!) para engabelar Narcisos, na tentativa de despertá-los micropoliticamente, no espelho d`água dessas bacias, para a “ecosofia guattariana” : um pensamento que atravessa e engloba, a um só tempo, o natural, o social e o mental.
A lugubricidade misteriosa do cenário da referida instalação não só traduz o ar da História respirado por nós e pela artista, mas, também, cria um espaço perfeito para uma espécie de arte-terapia breve destinada àquele nosso “narcisimo em tempos sombrios” – de que nos fala o psicanalista Jurandir Freire Costa. Por isso, a presença de termos e conceitos extraídos dos vocabulários específicos das psicologias Freudiana e Jungana para fundamentar teoricamente o projeto estético “Duarteano”.
Ora: como intelectual e educadora Viviani sabe muito bem o quanto é fácil, nos dias de hoje, se deixar levar abrindo-se mão do exercício da subjetividade. Saber disso lhe vale o privilégio de ser uma das poucas artistas locais capazes de estabelecer, com sua arte, uma relação cultural mais dinâmica, mais profunda e realmente “terapêutica”, com a sociedade em que vive.
Contudo, para finalizarmos por aqui, podemos pressupor que a artista, de maneira muito conceitual, também partilha com Russell Banks a seguinte noção deste: “De modo geral, a transformação não se produz a partir do centro, mas das margens e, por definição, acontece lentamente. A arte só tem efeito sobre as margens, um leitor de cada vez.” Mas não um leitor qualquer, nem um hipócrita leitor de sua obra. Apenas aqueles leitores, ou leitoras, que saibam adentrar o mundo da livre-troca com seu comércio sublime. Como é, e deve continuar sendo, o mundo das artes.
Ricardo Maia