Reminiscências: Do Mijãozinho Ao Sem Terra
Viviani Duarte - 2014-06-26 - 2014-08-01
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O Fato e o Lugar: Espaços e Tempos
“A categoria lugar traduz os espaços com os quais as pessoas têm vínculos mais afetivos e subjetivos que racionais e objetivos. (...) o lugar é onde estão as referências pessoais e o sistema de valores que direcionam as diferentes formas de perceber e constituir a paisagem.”
“Parâmetros curriculares nacionais – Geografia”
Os passos e as vozes das pessoas que caminham pela Praça Sinimbu ecoam pelos salões da Pinacoteca Universitária de Alagoas. Esse vai-e-vem das ações cotidianas do presente parece camuflar a história das coisas, a memória de todos nós. Para isso, é preciso libertar-se daquilo que chamamos de realidade concreta e perceber que cada local, cada voz, cada passo, é o resultado de uma série de iniciativas, elos de uma mesma corrente, ação dialética que orienta e dá sentido à vida. A arte existe fundamentalmente para que o homem compreenda o tempo e sua dinâmica, podendo assim, através do registro, da análise e da invenção, recriar e transformar o mundo.
Em meio à multidão, Viviani busca o seu olhar perdido entre tantos outros; no meio da praça de sua infância ela busca reconhecer os mesmos sinais, aquilo que se foi, aquilo que se perdeu, aquilo que resta. Nesse vento, nessa poeira que varre o espaço e cruza o tempo, a artista reconstrói a história com sensibilidade poética e inteligência política. A fotografia, com sua imensa capacidade de transformar o real, é utilizada por Viviani para a construção de um ambiente no qual a realidade e os fantasmas da cidade de Maceió surgem em perfis antropomórficos, numa poderosa imagem que aproxima paisagem arquitetônica e dramaticidade humana. Tudo aqui viabiliza uma operação artística que tem por objetivo revelar, denunciar e transformar através da utilização corajosa do passado.
Essa praça traz a alma da cidade e das pessoas que a construíram. O seu esquecimento reflete o desprezo dos poderosos que adotam na cidade a mesma atitude de ocupação e abandono em sua relação extrativista com a natureza e os seres. A praça elegante, o centro de lazer da pequena e harmoniosa capital transforma-se em território ocupado Nesse momento, aqueles que a abandonaram protestam por ela ter sido ocupada por aqueles que nada têm, os sem-terra, os sem-cidadania, os sem-voz na imprensa poderosa, os sem-emprego, os sem-assistência, enfim, os sem-nada que resolveram ocupar o que lhes pertence de fato e de direito. E aí estão eles, maltrapilhos, desprezados, velhos e crianças que não aceitam mais a trágica sina determinada por uma oligarquia insensível e cruel. Eles são a parte do fogo, do sal e da paixão.
Viviani, artista, psicóloga, cidadã, sensível as causas sociais, sabe que a arte contemporânea atua na confluência das ciências e na fresta do afeto. “Hay que endurecerse pero sin perder la ternura jamás.” A voz de “Che” é a eterna voz dos poetas e dos revolucionários e Viviani resgata a imagem perdida do “mijãozinho”, pequeno objeto de lirismo perdido em meio à essa ausência de sentido e de razão, inspirada no Manneken Pis, construído em Bruxelas e replicado e recriado por Belmiro de Almeida, no Rio de Janeiro, tornando-se símbolo e patrimônio da equipe do Botafogo carioca. Ao contrário do seu primo carioca, o “mijãozinho” alagoano desapareceu e Viviani com doçura e humor nos traz de volta essa lembrança, talvez - quem sabe - sugerindo que entre aquelas crianças simples que ocuparam o espaço de uma praça abandonada, existam lindos e diversos “mijõeszinhos” e que eles, diferentemente da imagem de bronze, não sejam destruídos e nem assassinados para que possam, no futuro, representar com dignidade o Brasil humano e fraterno que todos nós queremos e merecemos.
Marcus de Lontra Costa, Rio de Janeiro, Julho de 2014
Período: 25 de junho e 1 de agosto de 2014.