Eu Não Sou Eu E Nem Você

Martha Araújo - 2012-03-15 - 2012-04-28


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A lacuna que atravessa o Eu por dentro.

Mais do que interrogar os contornos de uma dada subjetividade, a exposição de Martha Araújo “Eu não sou eu e nem você” coloca em questão, no âmbito da pesquisa plástica, os próprios fundamentos da noção de “Eu”: por quais meios e processos se engendra e se estabiliza a imagem de um “Eu” no campo das artes plásticas contemporâneas?

A questão a que a artista se dedica, vê-se, sustenta uma crítica ao que vem a ser o princípio de identidade: cética de toda possibilidade de haver um “Eu” anterior à linguagem, à história, às relações sociais, este “Eu” que se acha sob a sua mira nada tem a ver com aquele da estética romântica que toma o sujeito na relação inquestionada que ele mantém com uma imagem unitária de si mesmo, uma imagem calcada em elementos fixos e estáveis, mas antes se reporta à imagem de um “Eu” que é puro descentramento, pura ausência de imagem, um “lugar móvel e provisório” constituído por processos alheios e estranhos a ele.

Para Rimbaud e, além dele, para toda uma vertente crítica das teses da filosofia identitária, o “Eu” é antes de tudo uma cisão interior, uma falta, uma terceira margem à procura de uma forma que possa acolhê-lo e fornecer-lhe sua substância.

Pensar, pois, como se engendra a noção de “identidade pessoal”, essa imagem que recolhemos de alguém por meio da fotografia, da biografia, de um discurso sobre si mesmo, significa pensar como se depura, por meio de processos enraizados em práticas históricas e linguísticas, um substrato a quem prontamente nos regozijamos em reconhecer como uma unidade, em conceder a ele uma identidade e uma posição na história. Habituados a pensar com desenvoltura num “Eu” dado a priori, mal nos damos conta dos processos que têm por função estabilizar essa forma de ficção nascida no interior da cultura humanística burguesa.

Daí, a recusa de Martha Araújo, expressa na afirmação que dá nome à exposição, em conceder ao “Eu” qualquer forma de autonomia, qualquer supremacia, qualquer porto seguro a quem ele pudesse se reportar para então gozar com esta identificação. Recusando o princípio de identidade enraizado na acepção cartesiana de um sujeito fechado em si mesmo e independente do mundo, os trabalhos da exposição Eu não sou eu e nem você remontam à história da arte para nela recolher a tensão que perpassa a montagem dessa ficção que subjaz à arte do retrato: o “Eu” singular.

O “Eu” é construído na história da arte, através de uma prática social. A subjetividade humana como objeto da pesquisa plástica é contemporânea da Idade Moderna, seus primeiros traços podem ser detectados nos retratos renascentistas que pré-figuravam um “Eu” claro, nítido, definido em oposição a um fundo exterior e estranho a ele. Tratava-se de explorar os nichos dessa abstração, de origem religiosa, a quem damos o nome de “alma humana” (ou de sua contrapartida científica, a “personalidade humana”), pondo em relevo seus traços e formações, multiplicando suas nuances e trazendo à luz o que só se desvelaria ao cabo de um longo e penoso processo: a verdade essencial de um dado sujeito. Para alguns autores, essa procura por uma essência humana deve ser creditada à sensibilidade cristã: Cristo, ecce homo, é esta identidade para quem concorre a síntese entre o elemento universal e o singular.

O dualismo sujeito-objeto que permeia a filosofia cartesiana respondeu pela conquista de uma espacialidade na qual se procurou inquirir o que vem a ser o sujeito humano na sua relação com as coisas do mundo: a tese da identidade do sujeito e do objeto e, por conseqüência, da identidade do sujeito consigo mesmo, aparece como a pressuposição necessária da existência da verdade. Crítica dessas posições, a estética moderna exacerbaria os liames desta sensibilidade, expondo seus conflitos e sublinhando sua impossibilidade. Os célebres auto-retratos de Van Gogh, os personagens angustiados de Edward Munch ou de Egon Schiele, as fulgurações alucinatórias de Pablo Picasso e de Francis Bacon ou os personagens silenciosos de Edward Hopper são exemplos dessa arte que se desenvolveu tendo por estratégia apontar para a impossibilidade de se recortar o sujeito de seu meio para então vê-lo aí em sua singularidade própria.

É, pois, no interior dessa tradição crítica com relação ao princípio de identidade do “Eu” que se inscreve a investigação de Martha Araújo. Sua procura inclui uma série de “colchões sensoriais”, realizada no início de sua carreira, nos quais os corpos dos visitantes, acomodados em recortes feitos em baixo-relevo na espuma, se perdiam em sensações de um corpo sem órgãos, corpos destituídos de uma organização simbólica coerente que pudesse significá-los e acolhê-los. Estas sensações puderam ser experimentadas depois por meio das roupas de tecido e velcro, construídas por Martha de uma maneira própria e singular, que engajam quem as veste em relações de atração e repulsão, de identidade e diferença, de proximidade e distanciamento. Agora, Martha Araújo parte da fotografia como algo dado, para nelas de novo apontar para este resto que escapa de toda colonização simbólica. Os elementos da estética fotográfica clássica – a luz, a cor, a perspectiva, o fotograma – não lhe interessam, ou melhor, só lhe interessam como elementos que ela manipula para a montagem desse cenário a quem damos o nome de “Eu” e cuja natureza ficcional fica ainda mais ressaltada com os procedimentos escultóricos que ela agrega à imagem – recortes, colagens, bordados (a quem ela chama de tecituras, um termo escrito com a letra cê para se diferenciar de tessitura).

O gesto recorrente, obsessivo, da artista tece linhas de algodão sobre “imagens do Eu” encapsulando-as, estas linhas serão, por sua vez, re-fotografadas, re-trabalhadas, dando origem a novas imagens que são projetadas sobre objetos materiais. Por meio desse tensionamento entre vários campos de sensibilidade, dessa ambivalência entre o elemento fotográfico e o elemento escultórico, movimentos mínimos vão ganhando corpo e dando novos sentidos aos sujeitos. Aqui, o “Eu” já não coincide mais consigo mesmo, as figuras recortadas já não mais se encaixam nos contornos dos quais elas, algum dia, se destacaram. As formas recortadas que antes foram preenchidas por figuras humanas se mantêm abertas, desejantes. Nostálgicas de uma totalidade que nunca aconteceu, elas jazem ali à espera de um preenchimento que se sabe impossível.

Curador Márcio Rolo

Período: 16 de março a 28 de abril de 2012.