Ciscos
Pedro Lucena - 2012-11-22 - 2013-01-25
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A obra de Pedro Lucena sempre foi um enigma para mim. Sempre me perguntei como aquelas imagens ingênuas e quase infantis conseguiam me colocar em contato com o sagrado e com o mistério. Como se uma criança brincasse de celebrar uma missa no meio da noite.
Na sua primeira exposição - “Ars Liberat”, de 2008 - era uma missa para o corpo e agora, em “Ciscos”, é uma missa que celebra a “natureza”. A construção simbólica aqui se volta para uma natureza presente tanto no ambiente quanto na própria matéria que constitui os corpos. Afinal, o que nos une é aquilo de que somos feitos, mas há algo também que nos diferencia. Ou seja, segundo Pedro Lucena, a nossa materialidade é, antes de tudo, feita de restos, galhos, folhas, musgos, pó. Contudo, essa união, ou reunião de elementos, tende a se repartir, deixando margens para uma relação entre o selvagem e o estrangeiro.
O primitivo das suas construções de ex-votos é talhado num olhar de sacrifícios pessoais, de consagração e de renovação num pacto de fé que se encontra com o estrangeiro, com o que se pode metafisicamente chamar de extraterrestre. A tecnologia é feita de pau. “Ciscos” é uma renovação do pacto da fé no encontro daqueles que nunca poderiam habitar o mesmo mundo.
O projeto do progresso faliu. Agora, só resta entendermos que o reconhecimento das nossas identidades está no que foi jogado fora. A criança vê esse estrangeiro-extraterrestre e não se espanta, não julga, porque a alteridade já foi realizada na árvore. Eu me deparo com a estranheza deste encontro, pois tenho que mergulhar na minha própria estranheza infantil, sem proporção e sem sexo. “Ciscos” fala desse encontro, onde personagens singulares são constituídos da mesma matéria. Onde a sabedoria é feita de trastes. Onde a ironia e a consciência do mundo dão lugar ao mistério gentil, terno e natural.
Acaso seria possível conhecermos o mundo sem perder as nossas raízes? Nem sei bem por que fiz essa pergunta. Mas ao ver o trabalho de Pedro Lucena continuo a me perguntar. Então me aproximo mais dos seus desenhos, meu olho se aproxima de uma trama de traços infinitos para dentro. A resposta está dentro do traço. A missa termina e a criança dorme.
René Guerra
Cineasta
Período: 22 de novembro de 2012 a 25 de janeiro de 2013.