Barro Oco

Eva Le Campion - Período: de 20 de abril a 19 de maio de 2001


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BARRO OCO -- Possibilidade de um novo fazer em arte

Nunca é demais lembrar que são as obras que falam por si. Tarefa nada fácil será a de abarcar essa fracção do desconhecido, aqui posta, em BARRO OCO -- feliz combinação de significado e sonoridade dada pela palavra que intitula a mostra. Se por um lado aponta a multiplicidade de experiências e recursos possíveis com a matéria prima do barro, por outro, provocativamente, nos remete à intemporalidade desse mesmo barro em nossa cultura construtiva, utilitária e decorativa, recolocando-o sob novo olhar.

Eva o experimenta cru e seco, cozido e vitrificado. E ainda o recorta, cola, molda, esculpe e amassa, em pequenas e encantadoras formas que cria e que, também, se apropria do trabalho de outras mãos que os fabricam sem o compromisso de estarem "fazendo arte".

Calangos, bolinhos, feijões, alças, casulos, letras, moedas, coroas, calungas, colam-se em tecidos, montam ripas, alojam-se em gavetas, formam pilhas, recheiam potes e travessas, se entrecruzam no chão. As variadas escalas os tornam resistentes e fortes, algumas vezes. Noutras, os deixam ocos e frágeis, supondo-se não ser tão simples sua inserção e combinação a outros materiais. Trata-se de trabalho árduo da artista -- trabalho mental, braçal, de desenho e pintura.

Cada objeto demonstra a clara inteligência de sua produção, mesmo instável -- pois sempre foi difícil conciliar tarefas ordinárias com a necessidade de uma disciplina de ateliê -- mesmo sofrendo as mazelas de um meio precário e de uma busca interior inócua por uma identidade inexistente, recortando assim, para si, um espaço de sobrevida.

O trabalho que desenvolve na Cruz Vermelha através de uma oficina-olaria, a coloca, dia a dia, com o cotidiano de crianças e jovens carentes que ali estão aprendendo, com seu Deda e Jean, um ofício que possa, talvez, lhes garantir sustentabilidade, ou ainda, o desenvolvimento de, quem sabe, uma possível vocação artística.

Surgem dessas mãos, feijões, calungas, letras e casulos. E ainda, calangos criados por Gilson, o jardineiro, calungas graúdas de Lúcia, a arrumadeira e miniaturas de seu Pintinho, o motorista. Um punhado de barro foi dado a cada um deles para fazer o que bem quisessem. O resultado se tornou, então, parte de alguns de seus projetos e, progressivamente, foram sendo incorporados aos trabalhos.

Em alguns casos possibilitaram algo novo como foi o que aconteceu com os calangos de Gilson. Os vi um dia, em cima de sua mesa de trabalho, e Eva a admirar-se de sua forma, pureza e significado. Homens-calango, me dizia, correndo com a comida roubada na boca, uma imagem por ela construída. E nos surpreende quando os põe em cima de quadrados e ripas de madeira ou num prato pintado, com uma cuia de comida à frente.

Correndo ao quadrado é realizado sobre chassis de tela destinados à pintura. Retirado o pano, os cola, ali mesmo, direto na madeira, com papéis coloridos na boca. Foi o começo da investigação e o fim de sua pintura de cavalete.

Portanto, cada trabalho foi sendo pensado numa clara intenção de repor outras mãos, outros significados, especialmente esses, vindos de um mundo cru, como o barro e destituído de ilusões. Aquilo que é percebido como artesanato para uns, vira arte para Eva.

Daí sua pintura-escultura, onde seu raciocínio construtivo se faz a partir da reunião desses artefatos, aparentemente precários, porém belos com ou sem pintura, cozidos ou secos, esmaltados por vezes, evidenciando uma nova materialidade e provocando, com isso, nova poesia.

Investigar essa nova possibilidade tem sido sua tarefa, numa lúdica junção de elementos e formas, combinando a isso os seus muitos anos de desenho e pintura. Não há como não ser tocado por essa poética.

BARRO OCO torna possível a construção de uma pintura-escultura depois de dois importantes caminhos abertos na arte contemporânea alagoana: a infinita-finita possibilidade da pintura em Delson Uchoa e a reposição do sensorial-tridimensional na arte-objeto de Marta Araújo. Não poderíamos ser mais felizes. Eva constrói um modo particular de fazer arte, apontando uma outra saída para seu mundo real onde vive e trabalha -- a inserção de outras mãos por sua mão. É aí que reside sua importância e atualidade -- um novo significado, qualidade que o mundo da media não sabe ainda como lidar.

MARTA MELO
Arquiteta, especialista em História da Arte e Arquitetura no Brasil pela PUC-RJ

Período: de 20 de abril a 19 de maio de 2001